sábado, 2 de fevereiro de 2013

Deus, tempo e eternidade (Parte II)

*William Lane Craig

E quanto à temporalidade divina? Permitam-me partilhar com vocês dois argumentos favoráveis à temporalidade divina. O primeiro é o argumento baseado no relacionamento causal de Deus com o mundo. Para entendê-lo, é preciso antes compreender a diferença entre mudança intrínseca e extrínseca. Algo muda intrinsecamente se uma de suas propriedades, isolada do relacionamento com qualquer outra coisa, mudar. Por exemplo, uma maçã durante a maturação muda de verde para vermelho. Essa é uma mudança intrínseca à maçã. Algo muda extrinsecamente se mudar nas suas relações com algo mais. Por exemplo, eu já fui mais alto do que meu filho John, agora sou mais baixo do que ele, não por causa de alguma mudança intrínseca em mim, mas em razão de uma mudança intrínseca nele. Ele ficou mais alto. Eu fiquei mais baixo do que John sofrendo uma mudança extrínseca. Com relação à minha altura, permaneci intrinsecamente imutável, mas sofri uma mudança extrínseca com relação a John, já que agora, devido ao crescimento dele, eu estou numa nova relação, qual seja, menor do que, uma vez que antes eu tinha uma relação diferente com meu filho John, maior do que. Assim, pois, sofri uma mudança relacional ou extrínseca.
Ora, para que algo seja temporal, não precisa estar mudando intrinsecamente. Tudo o que precisa é sofrer uma mudança extrínseca nas suas relações. Por exemplo, vamos imaginar uma rocha existindo no espaço exterior, congelada em zero absoluto. (Sei que isso é fisicamente impossível, mas é apenas um experimento mental). Imaginemos que essa rocha está congelada em zero absoluto; portanto, é absolutamente imutável intrinsecamente. Tal rocha seria atemporal? Bem, é claro que penso que não, pois ela poderia se modificar extrinsecamente nas suas relações com as coisas em torno de si. Um meteoro passa sibilando por ela — pouco depois, passa outro — e, mais tarde, mais um. Ainda que a rocha seja intrinsecamente imutável, ela conserva óbvias relações temporais com esses eventos sucessivos. Portanto, a mudança meramente extrínseca é suficiente para a existência temporal.
Agora, Deus, como criador do universo, está causalmente relacionado com o mundo. Ele traz o mundo à existência. E a questão é: seria Deus temporal, em virtude de seus relacionamentos mutáveis com o universo temporal? Façamos um experimento mental.
Imaginemos uma vez mais Deus existindo sozinho, sem o mundo, sem a criação. Em tal estado, Deus ou é temporal ou é atemporal. Se ele for temporal, então o caso está resolvido. Deus existe no tempo. Então, vamos supor que ele seja atemporal. Além disso, vamos supor agora que Deus decide criar o mundo e assim ele traz o universo à existência. Agora, ao fazer isso, Deus continua atemporal ou, ao contrário, torna-se temporal em virtude do seu novo relacionamento com o mundo mutável. Se Deus passa a ser temporal, então ele claramente existe no tempo. Então, Deus poderia continuar atemporal ao criar o universo? Bem, acho que não. Por quê? Porque, ao criar o universo, Deus sofre no mínimo uma mudança extrínseca — uma mudança relacional. No instante da criação, ele entra numa nova relação, na qual ele antes não estava porque não havia “antes”. É o primeiro instante do tempo. E, no primeiro instante do tempo, Deus entra na nova relação de sustentar o universo ou, pelo menos, de coexistir com o universo, relação na qual ele não estava antes. Assim, em virtude dessa mudança relacional extrínseca, Deus seria trazido para dentro do tempo no momento da criação.
Pensadores como Tomás de Aquino tentaram se esquivar da força desse argumento com a negação de que Deus mantenha qualquer relação real com a ordem criada. Aquino admitia que, se Deus entrasse em novas relações no instante da criação, como a de ser Senhor, então ele seria temporal. Assim, pois, Aquino foi levado a negar que Deus mantenha quaisquer relações reais com o mundo e afirmou que, como criaturas, estamos realmente relacionados com Deus, como seus efeitos, mas Deus não está realmente relacionado conosco como nossa causa ou Criador. Penso que tal doutrina é claramente um expediente do desespero. Deus está causalmente relacionado ao universo e parece impossível, ou incoerente, que poderia haver efeitos reais sem uma causa real. Como poderíamos estar realmente relacionados com Deus como efeitos de uma causa, mas Deus não estar relacionado conosco como causa de um efeito? Além disso, Deus parece estar claramente relacionado conosco, visto que ele nos conhece, ele nos ama e quer a nossa existência. Parece-me, portanto, que a solução de Aquino simplesmente não é plausível. São relações reais, segundo qualquer definição sensível da expressão “relações reais”. Concluo, pois, que temos uma forte razão para entender que, em virtude da sua relação causal com a criação temporal, Deus seja temporal.
O segundo argumento que eu gostaria de partilhar é o argumento baseado no conhecimento de Deus acerca dos fatos temporalmente dinâmicos [tensed facts]. Para entender esse argumento, precisamos perceber exatamente a diferença entre “fatos temporalmente dinâmicos” [tensed facts] e “fatos temporalmente estáticos” [tenseless facts]. Por exemplo, é um fato temporalmente estático que a conferência sobre C. S. Lewis, em Cambridge, começa em 21 de julho de 2002. O fato jamais muda. Foi sempre verdadeiro, será sempre verdadeiro, é uma verdade temporalmente estática que a conferência sobre C. S. Lewis se inicia em 21 de julho de 2002. Mas esse fato temporalmente estático não basta para que eu me disponha a deixar Atlanta, tome um avião em 20 de julho e voe para Cambridge. Por que não? Bem, porque um fato temporalmente estático é sempre verdadeiro. O que preciso saber, além desse fato temporalmente estático, para me dispor a tomar um avião e voar para Cambridge? O que preciso saber é o fato temporalmente dinâmico de que hoje é 20 de julho, ou que amanhã é 21 de julho. Em virtude de saber desse fato temporalmente dinâmico, eu tomo o avião e vou para Cambridge para a conferência. Portanto, fatos temporalmente dinâmicos são fatos sobre o relacionamento de certos eventos com o momento presente. Idiomaticamente, fatos temporalmente dinâmicos podem ser expressos pelos tempos verbais, como passado, presente e futuro; ou por advérbios como “hoje”, “ontem” e “amanhã”; ou por locuções prepositivas como “num período de dois dias” ou “três dias atrás”. Todos esses são meios de expressar fatos temporalmente dinâmicos.
Agora, note-se que, em virtude de conhecer fatos temporalmente dinâmicos, eu devo ter uma posição temporal. Se sei que hoje é 20 de julho, estou posicionado em 20 de julho. Além disso, em razão de conhecer fatos temporalmente dinâmicos, eu estaria constantemente mudando. Eu saberia que hoje é 20 de julho. No dia seguinte, saberia, então, que hoje é 21 de julho e no próximo dia que hoje é 22 de julho. Assim, qualquer ser que conheça fatos temporalmente dinâmicos está sofrendo mudanças e, portanto, é temporal. Como ser onisciente, Deus não pode desconhecer fatos temporalmente dinâmicos. Ele deve conhecer não somente os fatos temporalmente estáticos sobre o universo, mas deve conhecer também os fatos temporalmente dinâmicos sobre o mundo. Caso contrário, Deus seria literalmente ignorante a respeito do que está ocorrendo agora no universo. Ele não teria a mínima ideia do que está acontecendo no universo porque isso é um fato temporalmente dinâmico. Ele seria como o diretor cinematográfico que conhece a película guardada na lata de filme, mas não tem ideia de qual seja o quadro que está sendo projetado agora na tela do cinema do centro da cidade. Da mesma maneira, Deus seria ignorante do que está acontecendo agora no universo. Certamente que isso é incompatível com uma doutrina vigorosa da onisciência divina. Logo, tenho a convicção de que, se Deus é onisciente, ele tem de conhecer os fatos temporalmente dinâmicos e, portanto, tem de existir no tempo.
Considero, portanto, que temos dois bons argumentos favoráveis à temporalidade divina. Que objeções podem ser levantadas contra Deus existir no tempo? Permitam-me, mais uma vez, mencionar duas. A primeira objeção à possibilidade de Deus existir no tempo é que os dois argumentos que acabei de apresentar favoráveis à temporalidade divina pressupõem uma visão dinâmica do tempo. Como já ouvimos no transcurso dessa conferência, os filósofos do tempo diferem com respeito a duas abordagens radicalmente distintas sobre a natureza do tempo. De acordo com a teoria dinâmica do tempo, o vir a existir temporalmente é objetivo e real. O passado não existe mais; o futuro não existe ainda e é pura potencialidade; e as coisas vêm a existir no presente e deixam de existir à medida que passam, de sorte que o processo temporal é dinâmico e real. Passado, presente e futuro são características objetivas da realidade. John Polkinghorne e Bob Russell enunciaram essa visão.
Comparativamente, os teóricos que defendem a visão estática do tempo consideram que todos os momentos no tempo são igualmente reais, seja passado, presente ou futuro. O tempo é como se fosse um contínuo espacial, e os eventos são ordenados nesse contínuo como antes de e depois de. Todavia, a distinção entre passado, presente e futuro não passa de uma ilusão subjetiva da consciência humana. Na realidade, o universo é um bloco quadrimensional que apenas existe. Nunca vem à existência e nunca deixa de existir. É realmente coeterno com Deus, e pode-se dizer que é criado apenas no sentido de depender eternamente de Deus para existir. Tem princípio no mesmo sentido que a fita métrica tem um início, isto é, há um primeiro centímetro. Mas o universo não passa a existir; o bloco quadridimensional de espaço-tempo tão somente existe. De modo semelhante, na teoria estática do tempo não há mesmo fatos temporalmente dinâmicos. O tempo linguístico serve apenas para expressar a perspectiva subjetiva de quem o usa. Não há verdade absoluta acerca do que está acontecendo agora no universo, porque “agora”, bem como “aqui”, serve meramente para apreender a perspectiva subjetiva de alguém. Cada pessoa em cada instante no universo espaço-temporal considera seu tempo como “agora” e outros tempos como “passado” e “futuro”. Mas na realidade objetiva não existe “agora” no mundo. Tudo existe apenas de modo temporalmente estático. Russell Stannard enunciou essa visão.
Caso se adote a visão estática do tempo, negando-se a realidade objetiva da existência temporal e dos fatos temporalmente dinâmicos, os dois argumentos favoráveis à temporalidade divina são cortados pela raiz. O argumento baseado na relação real de Deus com o mundo presumia a realidade objetiva do vir a existir temporalmente, e o argumento baseado no conhecimento de Deus sobre o mundo temporal presumia a realidade objetiva dos fatos temporalmente dinâmicos. Porém, caso a visão estática do tempo esteja certa, nada com o que Deus está relacionado jamais veio a existir nem ocorreu, e todos os fatos temporalmente estáticos existem, de sorte que Deus não sofre mudança extrínseca nem intrínseca. Ele pode ser o Sustentador e Conhecedor imutável e onisciente de todas as coisas e, por esse motivo, existe atemporalmente. Porque, se o tempo existe como parte de um bloco quadrimensional, Deus não sofre mudança na sua relação causal com o mundo. Existindo fora do tempo, ele apenas causa a ocorrência de todas as coisas no bloco quadrimensional nas suas diversas posições de espaço-tempo. Todavia, ele é absolutamente imutável nas suas relações causais com o mundo. Semelhantemente, na visão estática do tempo não existem fatos temporalmente dinâmicos. Fatos temporalmente dinâmicos são uma ilusão subjetiva da consciência humana. No bloco de espaço-tempo não existe realmente “agora”. Não há passado nem futuro. São apenas perspectivas de diferentes pessoas no bloco, mas nenhuma delas é objetiva nem real. Portanto, se você adota a visão estática do tempo, os argumentos que apresentei em favor da temporalidade divina não contam.
Assim, estou convencido de que a teoria da eternidade divina que se adota permanecerá ou cairá dependentemente da decisão que for tomada com relação à teoria dinâmica do tempo versus a teoria estática do tempo. Quem adota a teoria dinâmica do tempo deverá acreditar na temporalidade divina. Para quem adota a teoria estática do tempo, então, a visão mais plausível será a atemporalidade divina.
Agora, na minha palestra desta manhã, não há tempo para aprofundar-me nessa questão. Isso exigiria toda uma palestra, todo um seminário. Mas, se interessar a alguém, abordo os argumentos a favor e contra a teoria estática do tempo em meu livro Time and Eternity [Tempo e eternidade]. E, por insignificante que pareça, julgo que os argumentos favoráveis à teoria dinâmica do tempo são superiores aos argumentos a favor da teoria estática do tempo. Considero que o tempo é dinâmico, que a teoria estática do tempo está sujeita a graves objeções filosóficas e, também entendo, a objeções teológicas, dado que a teoria dinâmica do tempo é compatível tanto com a nossa percepção quanto com o que os filósofos nos dizem a respeito da natureza do tempo. Portanto, estou convencido de que o tempo é dinâmico, e, por isso, posiciono-me do lado da temporalidade divina.
Antes de concluirmos, há, porém, uma segunda objeção à temporalidade divina com a qual temos de lidar. A questão é: por que Deus não criou o mundo mais cedo? O filósofo alemão Leibniz apresentou essa objeção ao filósofo newtoniano Samuel Clarke, na correspondência entre eles. Clarke, assim como Newton, cria que Deus havia passado um tempo infinito, vazio e improdutivo até certo momento no qual ele criou o universo. Então, Leibniz perguntou: “Por que ele não criou o mundo mais cedo?”. Por que razão Deus passou uma eternidade num período de indolência criativa antes de criar o mundo, e por que criaria ele o mundo no momento em que o criou, por que não mais cedo ou mais tarde? Vejam a coisa da seguinte maneira. Segundo essa visão newtoniana, a qualquer tempo t anterior ao momento da criação, Deus demorou a criar até um momento posterior t + n. Seja qual for o momento do passado infinito que se escolha, nesse momento Deus poderia ter criado o mundo, todavia ele preferiu não criá-lo. Embora desde a eternidade Deus quisesse criar o universo, ele privou-se deliberadamente de criá-lo nesse momento, adiando-o até algum tempo mais tarde. Um ser supremamente racional, assim como é Deus, não adiaria a realização da sua vontade se não fosse por uma boa razão. Mas no tempo infinito e vazio pode não haver razão para se preferir criar em dado momento e não noutro, pois no tempo infinito e vazio todos os momentos são iguais. São indistinguíveis e, portanto, pode não haver razão para se escolher um momento em vez de outro, e, assim, não há razão para Deus deixar de criar de algum tempo t até t + n. Portanto, Leibniz argumentava, deve-se dizer que o tempo começou no momento da criação, que Deus não passou através de um tempo infinito e vazio até a criação, mas que o tempo começou no exato momento da criação. Essa é exatamente a visão que Santo Agostinho também adotou ao tratar do problema.
Temos agora uma situação extremamente bizarra. Vimos que o tempo precisa ter tido um início. Deus existe no tempo. Nada obstante, Deus não tem um início. Como é possível decifrar isso? Como é possível Deus existir no tempo, o tempo ter um início e, ainda assim, Deus não ter um início. Não parece fazer sentido. Será que isso nos força a dizer, portanto, que Deus é simplesmente atemporal?
Bem, julgo que não, e quero propor um modelo para a eternidade divina que, segundo entendo, resolverá esse problema. Vamos supor que o tempo começa a existir no momento da criação, e, por conveniência, vamos chamar esse momento de “big bang”. Então, Deus não existia literalmente antes do big bang, porque existir antes do big bang é existir numa relação temporal. Portanto, Deus não existiria temporalmente antes do big bang. De algum modo misterioso, ele existia além do big bang, mas não antes do big bang. Ora, em tal estado, é evidente que ele teria de existir de modo imutável, porque se houvesse eventos, se ele sofresse mudança, o tempo não começaria no big bang. Começaria com aqueles primeiros eventos. Assim, para existir além do big bang, Deus deve existir imutavelmente. Mas tal estado de imutabilidade, desprovido de eventos, deve ser, como costumo dizer, plausivelmente considerado um estado de atemporalidade. Portanto, o modelo que quero propor é que Deus existe atemporalmente sem a criação e temporalmente subsequente à criação.
Creio que podemos obter uma analogia física para isso a partir da noção de singularidade cosmológica inicial. A singularidade cosmológica em que nosso universo teve início não é, estritamente falando, parte do espaço e do tempo, e, portanto, não é anterior ao universo; antes, é a fronteira de espaço e tempo. A singularidade é causalmente anterior ao nosso universo, mas não é cronologicamente anterior ao universo. Ela existe na fronteira de espaço-tempo. Analogamente, quero sugerir que consideremos a eternidade, da mesma maneira que a singularidade, como a fronteira do tempo. Deus é causalmente anterior, mas não cronologicamente anterior, ao universo. Seu estado imutável, atemporal, eterno é a fronteira do tempo; nesse estado, ele existe sem o universo, e no momento da criação Deus entra no tempo em virtude da sua relação real com a ordem criada e seu conhecimento de fatos temporalmente dinâmicos, de sorte que Deus é atemporal sem a criação e temporal subsequente à criação.
Ora, essa conclusão extraordinária, penso eu, é merecedora de séria reflexão. Ela significa que Deus, na criação e também na encarnação, empreendeu um ato de complacência por nossa causa. Existindo unicamente na plenitude de seus relacionamentos intratrinitários, Deus não precisava se relacionar com pessoas temporais. Na sua existência atemporal perfeita não há déficit em seu modo de existir, não há nenhuma deficiência a ser preenchida. Mas pelo seu amor e graça ele quis criar um mundo temporal de criaturas finitas, para que pudessem ser convidadas a partilhar da vida trinitária íntima da Divindade e do amor das três pessoas da Trindade. Assim, na criação, Deus rebaixa-se para entrar e encarregar-se do nosso modo temporal de existência a fim de relacionar-se conosco e nos pôr em relação consigo mesmo. E, é evidente, na encarnação ele se rebaixa ainda mais para assumir não meramente nosso modo de existência, mas nossa própria natureza humana.
Entendo que isso faz totalmente sentido para o relacionamento entre Deus e o tempo. Deus é atemporal sem a criação e temporal subsequente à criação. Tendo entrado no tempo, ele não é dependente de sinais de luz de velocidade finita ou de procedimentos de tempo sincronizado, pois sabe o que é o tempo. Antes, existindo no tempo absoluto, Deus é, como proclamou Newton, o Senhor Deus de domínio do seu universo. Nas palavras de São Judas: “ao único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória, majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora, e por todos os séculos”.
Discussão
P. (Hugh Ross): Bill, quando a Bíblia fala de tempo, não é possível que esteja se restringindo ao tempo cósmico? E, uma vez que podemos conceber o tempo como propriedades multidirecionais, multidimensionais e paráveis, as quais o tempo cósmico não possui, não podemos conceber que a temporalidade seja independente do tempo cósmico, e a atemporalidade, portanto, poderia simplesmente ser existência além do tempo cósmico. Será que a Escritura não se refere temporalmente a “antes do início do tempo”? Essas coisas não são, pelo menos, possibilidades?
R. Sim. Certamente é possível considerar que Deus exista em algum tipo de dimensão de tempo secundário, que seria uma espécie de hipertempo no qual nosso tempo ordinário está embutido. Mas não estou convencido, como você sabe, Hugh, que essa seja uma boa alternativa, uma alternativa plausível. Penso que seja metafisicamente extravagante postular um hipertempo, um tempo de segunda dimensão. Não há evidência científica para isso. Nas teorias das cordas multidimensionais, como você sabe, essas dimensões adicionais são dimensões espaciais, não dimensões temporais. Todas elas evoluem numa única dimensão de tempo que começa com o big bang. Portanto, é uma extravagância metafísica postular um hipertempo.
Em segundo lugar, não julgo que pressupor uma dimensão de tempo secundário resolva de fato qualquer coisa, pois todos os problemas dos quais falamos, quanto à primeira dimensão do tempo, simplesmente voltarão a surgir com respeito à segunda dimensão do tempo. O hipertempo é temporalmente dinâmico ou temporalmente estático? E a coisa toda volta a surgir sem cessar. Portanto, não entendo que isso resolva realmente alguma coisa.
Por último, meu terceiro ponto seria que considero realmente que a suposição de uma dimensão de tempo secundário está aberta a certas objeções, isto é, entendo que só seja possível compreender o hipertempo construindo um tempo unidimensional no qual vivemos e existimos como um tempo estático. Se o nosso tempo for um tempo dinâmico, então não pode estar embutido numa dimensão de tempo superior. Considerá-lo como uma dimensão de tempo superior é tratá-lo como uma dimensão espacial, na qual seja possível, digamos, estender e acrescentar-lhe largura, de modo a se obter um plano. Mas, se você tem uma teoria dinâmica do tempo, o tempo não é alargado espacialmente como uma figura linear. Isso só funcionará numa teoria estática. E, visto que não considero que a teoria estática seja correta, por inúmeras razões, não acho, portanto, em última análise, que o hipertempo seja metafisicamente possível. Logo, por essas razões, eu o rejeitaria.
P. (Hugh Ross): Bem, e quanto à possibilidade de um hiper-hipertempo? Noutras palavras, alguma capacidade de Deus completamente independente de qualquer conceito de tempo que temos, mas que apesar disso permitiria a Deus --
R. Veja, quando você usa a ideia de extradimensionalidade, entendo que a está usando de fato como uma metáfora para algo que não é literalmente uma dimensão de tempo mais elevada. É uma metáfora para dizer que Deus tem a capacidade de agir em nosso tempo de maneiras extraordinárias, ou alguma coisa desse tipo. E, certamente, eu admitiria isso, mas não julgo que a metáfora de embutir dimensões de tempo mais altas seja uma metáfora proveitosa, pois é demasiadamente ilusória. Se for considerada literalmente, como já disse, acho que seja extravagante, não soluciona o problema e tem sérias objeções.
P. Obrigado por sua excelente explicação! O conceito da imutabilidade, da impossibilidade de mudança de Deus é, acho eu, essencial, caso queiramos manter distância da Teologia do Processo e de outras áreas, nas quais entendo que poderíamos dar errado. Se Deus é atemporal antes da criação e temporal depois da criação, você estaria dando a entender alguma mudança na natureza, na essência ou no caráter de Deus, ou simplesmente na sua relação com o tempo?
R. Excelente pergunta! Não estou, de modo algum, dando a entender mudança na natureza de Deus. Lembre-se, falei da sua mudança extrínseca, mudança nos relacionamentos. Essa não seria uma mudança na sua natureza. Entendo, de fato, que Deus também muda de maneira intrínseca — por exemplo, saber que horas são. Ele sabe que agora é t1, agora é t2, agora é t3. Mas julgo que esses tipos de mudanças triviais não ameaçam jamais o conceito ortodoxo de Deus. O crucial é que Deus não muda nos seus atributos de onipresença, onipotência, santidade, amor, eternidade, e todos os demais. De acordo com esse modelo, todos eles seriam preservados como atributos essenciais de Deus.
P. Você disse no início da sua palestra que os leigos quase sempre fazem a pergunta: “Por que Deus não poderia ser tanto atemporal quanto temporal?”. Eu perguntaria isso novamente: por que Deus não poderia ser atemporalmente existente ou temporal? Entendo que há um elemento de atemporalidade dentro do tempo. Esse é meu argumento.
R. Você percebeu que o modelo que adotei no final é realmente essa intuição do leigo? Ou seja, argumentei que Deus é atemporal e temporal. É a intuição do leigo, mas, a menos que se apresente um modelo, não passa de uma contradição absoluta. É como afirmar que algo é A e não-A, o que é logicamente incoerente. É impossível. Mas tentei fornecer um modelo para que não seja mais autocontraditória. Como qualifico esse modelo? Deus é atemporal sem o universo e temporal subsequentemente ao princípio do universo. O que fiz, em certo sentido — e acho que seja muito irônico, pois não planejei fazer isso —, foi terminar demonstrando a verdade daquilo que o leigo imagina quando diz que Deus é tanto temporal quanto atemporal. Entendo que isto está certo: ele é atemporal sem a criação e temporal subsequentemente ao momento da criação.
P. Mas eu lhe diria que algo deve ter se perdido aí, na transição de ser atemporal para ser temporal, porque, se Deus passa a ser temporal após ou durante a criação, ele deve não se lembrar mais da atemporalidade que tinha antes. Não pode se lembrar dela porque não é mais atemporal.
R. Sim — bem, está certo! Essa é uma teoria muito esquisita, admito. É um modelo muitíssimo estranho. Mas, quando se lida com temas como tempo e eternidade, quase tudo o que se propõe é estranho! Portanto, o que esse modelo exigiria que disséssemos é que a onisciência de Deus no seu estado atemporal envolve o conhecimento de verdades exclusivamente temporalmente estáticas, como: “Em t=0, eu crio o mundo”, “em t=n, liberto os israelitas da escravidão”, “em t=n+m, encarno-me na pessoa de Jesus de Nazaré”, e assim por diante. No momento da criação, haveria repentinamente um número imensurável de proposições temporalmente dinâmicas que trocariam seu valor de verdade de falso para verdadeiro: ou seja, “Eu libertarei os israelitas”, “Eu me encarnarei”, e assim por diante. Proposições no passado passarão a ser verdadeiras: “Eu criei o universo há um minuto”, “Eu fiz isso ou aquilo”, e assim por diante. Mas não haveria proposições no passado sobre o estado atemporal antes da existência do mundo, porque ele não está no passado.
P. E quanto às proposições de futuro contingente? Deus é apanhado de surpresa pelo que fazemos?
R. Não, não acho que seja porque entendo que ele é onisciente. A doutrina da onisciência diz que, para qualquer proposição ou fato verdadeiros, Deus conhece essa proposição ou conhece esse fato e ele não crê em nenhuma proposição falsa. Essa é a definição tradicional de onisciência. Uma vez que agora há verdades sobre o futuro, Deus, como ser onisciente, tem de conhecê-las. E isso é o que a Bíblia afirma. O Novo Testamento tem um vocabulário inteiro de palavras gregas com o prefixo pro-, como prognosis, que significa literalmente “conhecimento antecipado”, o qual é atribuído a Deus. Ele prediz (promartureo) o futuro. Ele predestina (proorizo) o futuro. Além disso, o conhecimento que Deus tem do futuro é exemplificado na profecia, como a predição de Jesus sobre a traição de Judas e a negação de Pedro, eventos altamente contingentes. Afirmo, portanto, que Deus não se surpreende pelo que sucede no curso do desdobramento do tempo, porque ele é onisciente.
P. Onde obtém ele tal presciência, visto que se tornou temporal?
R. Essa é uma boa pergunta. Há, pelo menos, duas teorias, acho eu, que podem ser adotadas para fundamentar a presciência divina. Uma seria a de que Deus simplesmente tem onisciência como um atributo essencial; é um atributo essencial de Deus acreditar única e exclusivamente em proposições verdadeiras. Ele não aprende nada porque ele tem exatamente a propriedade essencial de conhecer toda a verdade, e seria errado imaginar que Deus precise, de algum modo, de aprender o que ele sabe. O outro modelo é chamado de “conhecimento médio”, o qual sustenta que Deus sabe o que toda criatura livre faria livremente em quaisquer circunstâncias em que ele a puser. Em virtude de conhecer essas verdades e de conhecer o decreto da sua própria vontade para criar certas circunstâncias e colocar nelas certas criaturas, Deus, então, sabe tudo o que vai acontecer. Estou convencido de que um desses dois modelos é um modelo viável para a onisciência divina e o modelo do conhecimento médio é especialmente útil para explicar a providência de Deus sobre um mundo de criaturas livres.


 Notas
1 Publicado em português com o título Deus e a nova física (Lisboa: Edições 70, 2000). [N. do R.]
2 Publicado em português com o título Decepcionado com Deus (São Paulo: Mundo Cristão, 1990). [N. do R.]
3 Publicado em português com o título A cabana na grande floresta (Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1975). [N. do R.]
4 Laura Ingalls Wilder, Little House in the Big Woods (Nova Iorque: Harper & Row, 1932), pp.237-238.




* Dr. Willam Lane Craig é doutor em filosofia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra, e em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Disponível em: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/deus-tempo-e-eternidade. Traduzido por Marcos Vasconcelos. Revisado por Djair Dias Filho.

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