*William Lane Craig
É um grande prazer estar aqui, e fiquei particularmente feliz que
Walter tenha mencionado a Sociedade Filosófica Evangélica [Evangelical
Philosophical Society]. Deus tem realizado uma obra notável no campo da
filosofia no âmbito anglo-americano, e o crescimento da Sociedade Filosófica
Evangélica é apenas uma evidência disso. Trouxe comigo alguns exemplares do
nosso periódico Philosophia Christi, para quem quiser conhecê-lo mais
de perto. Recebemos tanto a membros associados como a membros efetivos na
Sociedade. Os dois tipos de membresia incluem uma assinatura do periódico;
portanto, convido-os para depois darem uma olhada nele, se tiverem interesse.
No
programa, o tópico sob o qual estou inscrito para falar hoje é a eliminação do
tempo absoluto pela teoria especial da relatividade. Todavia, durante o
intervalo, mudei de ideia acerca do tópico e, ao ouvir Sir John ontem, fiquei
contente por tê-lo feito, pois considero que o Professor Polkinghorne solapou
com grande eficácia a ideia de que a teoria especial da relatividade eliminou o
conceito de Newton de tempo absoluto. Segundo afirmou Sir John, a noção de
tempo, ou de temporalidade, é no fundo uma noção metacientífica ou metafísica
e, portanto, não pode ser, em última análise, constatada pela ciência. Na
verdade, seria muito ousado da minha parte afirmar que a teoria da relatividade
não nos ensina realmente nada sobre a natureza do tempo, mas tudo sobre as
nossas medidas físicas do tempo. Assim, tenho a satisfação de mudar o meu
tópico, abandonando especificamente a teoria da relatividade para tratar da
discussão mais geral sobre o tópico “Deus, tempo e eternidade”.
Deus, declara o profeta Isaías, é “o Alto, o
Sublime, que habita a eternidade” (Is 57.15). Por ser profeta, e não filósofo,
Isaías não parou para refletir acerca da natureza da
eternidade divina. Ser eterno significa, no mínimo, não ter começo nem fim.
Afirmar que Deus é eterno significa minimamente que ele jamais veio à
existência e nunca deixará de existir. Existir eternamente é existir
permanentemente.
Dito
isso, devemos notar que há pelo menos duas maneiras como algo pode existir
eternamente. Uma maneira seria existir onitemporalmente, quer dizer, em cada
instante do tempo. E, se o tempo for ampliado infinitamente tanto para o
passado quanto para o futuro, então, o ser que existir onitemporalmente
existiria sem princípio nem fim. Ele jamais poderia vir a existir nem deixar de
existir; existiria permanentemente. E, tipicamente, a Escritura refere-se a
Deus nos termos da sua duração eterna, onitemporal. Por exemplo, Salmo 90.2
diz: “Senhor, tu tens sido o nosso refúgio, de geração em geração. Antes que os
montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade,
tu és Deus”. A imagem aqui, na mente do salmista, é a de um Deus onitemporal
que permanece todo o tempo, da eternidade passada à eternidade futura.
Por
outro lado, um ser poderia existir eternamente, sem começo nem fim, se tal ser
fosse absolutamente atemporal; quer dizer, um ser que transcendesse
completamente o tempo, desprovido de localização temporal e, portanto, sem
extensão temporal, mas existindo exclusivamente fora do tempo, não teria
princípio nem fim. Tal ser existiria, por assim dizer, num “presente” único e
atemporal. Embora a Escritura não se refira a Deus explicitamente nos termos
dessa eternidade atemporal, há, entretanto, algumas passagens bíblicas que
sugerem a transcendência extratemporal de Deus. Por exemplo, Gênesis 1.1 diz:
“No princípio, criou Deus os céus e a terra”. E o texto segue descrevendo a sua
criação do primeiro dia, do segundo, do terceiro, do quarto e assim por diante.
Portanto, o princípio vislumbrado pelo autor de Gênesis talvez não seja
simplesmente o princípio material do universo, o cosmos, mas um princípio em si
mesmo. Ora, uma vez que Deus não passou a existir, isso indicaria que Deus, de
algum modo difícil de expressar, existia além do princípio do tempo, além do
começo do tempo no universo descrito no versículo 1.
Da mesma forma, há no Novo Testamento uma série
de passagens interessantes que falam da existência de Deus antes do tempo. Por
exemplo, na doxologia que finaliza o livro de Judas, versículo 25, lemos: “ao
único Deus, nosso Salvador, mediante Jesus Cristo, Senhor nosso, glória,
majestade, império e soberania, antes de todas as eras, e agora,
e por todos os séculos”. Nessa passagem, em quase
inevitável façon de parler, ou modo de falar, o autor refere-se a
Deus como existente antes de todo o tempo; em certo sentido, Deus existe fora
do tempo. Se o tempo for finito e tiver um princípio, então, Deus, sendo
eterno, tem de existir além do tempo de algum modo.
Assim,
os dados bíblicos não são claros quanto à natureza da eternidade divina.
Algumas passagens dão a entender que Deus seria onitemporal e outras, que ele
seria absolutamente atemporal, e, portanto, é impossível decidir essa questão
biblicamente. Temos de voltar nossa atenção para a reflexão racional, teológica
e filosófica para julgarmos a natureza da eternidade divina.
Agora,
neste ponto, alguém poderia perguntar: “Por que isso? Por que não nos
contentamos com a afirmação bíblica de que Deus não tem princípio nem fim e
existe permanentemente, parando aí sem tentar decidir entre essas duas teorias
concorrentes quanto à eternidade divina?”. Gostaria de sugerir duas razões por
que considero importante mergulharmos nesse tópico mais profundamente e não nos
contentar apenas com a interpretação minimalista.
A primeira razão é de natureza apologética. Ou
seja, o naturalismo moderno costuma atacar o teísmo, ou a crença em Deus, não
apenas com base na falta de evidências para a existência de Deus, mas porque,
como às vezes eles alegam no papel de naturalistas, o próprio conceito de Deus
é incoerente, e, portanto, não pode existir nenhum ser cabível nesse conceito.
Um bom exemplo disso seria o premiado físico P. C. W. Davies em seu livro God
and the New Physics, 1 um desenfreado campeão de vendas quando foi publicado pela
primeira vez, lançando instantaneamente Davies à fama como um dos melhores
popularizadores da ciência em nossos dias. Davies afirma que Deus não pode ser
nem temporal nem atemporal. Ele diz que Deus não pode ser atemporal porque a
Bíblia o descreve como uma pessoa, mas as pessoas são por natureza
inerentemente temporais. Elas agem e reagem, são seres conscientes que
deliberam, planejam e se recordam. Elas pensam a respeito das coisas. Elas
pretendem fazer coisas e levam adiante seus projetos. Todas essas coisas são
atividades temporais, e, portanto, se Deus for pessoal como a Bíblia afirma,
ele não pode ser atemporal.
Por
outro lado, afirma Davies, Deus também não pode ser temporal. Porque, se ele
existir no tempo, estará sujeito às leis da teoria da relatividade que governam
espaço e tempo e, por essa razão, não poderá ser onipotente, pois está debaixo
das leis da natureza. Desse modo, o teísta é confrontado por um dilema. O
teísta crê que Deus é pessoal e onipotente, mas, se for as duas coisas, não
poderá ser atemporal nem temporal; logo, um Deus assim não pode existir. O Deus
da Bíblia não existe.
Ora,
para responder a pessoas como o Professor Davies, será simplesmente fútil citar
versículos da Bíblia, pois seu argumento é que o conceito bíblico de Deus é
incoerente. Por isso, o teólogo cristão precisa munir-se de algum modelo
coerente ou teoria da eternidade divina que escape do dilema de Davies.
A segunda razão por que considero que não
podemos permanecer calados é doutrinária. Quer dizer, por bem ou mal, já existe
um sem-número de declarações descuidadas sobre a doutrina da eternidade divina,
e, por isso, não há sentido em ficar calados agora. O gato já escapou do saco!
Nos púlpitos, os pregadores fazem constantemente declarações como “estaremos
com o Senhor na eternidade”, e assim por diante. Muitas vezes penso que essas
afirmações são teologicamente inexatas. Uma boa ilustração desse problema é o
livro Disappointment with God, 2 do célebre autor cristão Phillip Yancey. Bem, quero dizer
desde já que gostei de ler Disappointment with God e achei-o significativo e comovente.
Apesar disso, o ponto principal da solução de Yancey para o problema da
decepção com Deus — ou seja, a decepção causada pelo sofrimento e o mal
gratuitos que Deus permite em nossas vidas —, o aspecto central para a sua solução
é a doutrina de Yancey sobre a eternidade divina. Mas, quando se lê a sua
explicação para a eternidade, descobre-se que ela contradiz a si mesma. Na
verdade, ele adota duas analogias para a eternidade divina que defendem visões
mutuamente excludentes. Uma sustenta a atemporalidade e a outra, a
onitemporalidade divina. Assim, essa incoerência lógica finca-se no âmago do
seu livro e deixa sem resposta o problema da decepção com Deus.
Portanto,
como cristãos reflexivos, penso que não podemos simplesmente nos dar ao
capricho de continuar calados quanto à natureza da eternidade divina.
Precisamos nos envolver em projeto que selecione alguma teoria ou modelo de
eternidade divina que seja biblicamente fiel e logicamente coerente.
Então,
depois do que foi dito, quero destacar que não fazemos isso dogmaticamente,
pois as Escrituras estão abertas a esse respeito. A teoria que desenvolvermos
será sustentada experimentalmente e apresentada como um modelo sugerido ao
exame e à avaliação da comunidade cristã. E, na verdade, quando se contempla o
cenário contemporâneo, descobre-se que os acadêmicos cristãos divergem de fato
no modo como entendem a eternidade divina. Tradicionalmente, a eternidade de
Deus tem sido compreendida nos termos da atemporalidade. Deus simplesmente
transcende o tempo; ele não existe no tempo. Ele não existe agora, mas existe
simplesmente de modo atemporal. Entre os maiores proponentes dessa perspectiva
contam-se Santo Agostinho, Boécio, Anselmo e Tomás de Aquino. No cenário
contemporâneo, filósofos como Eleonore Stump e Norman Kretzmann, Paul Helm,
Brian Leftow e John Yates defendem todos a teoria da atemporalidade divina.
Por outro lado, há também um número considerável
de pensadores que defendem a temporalidade de Deus. Entre os autores clássicos,
podemos citar João Duns Escoto ou Guilherme de Ockham. Isaac Newton, o grande
pai da física moderna, no seu comentário a Principia, impresso que consta no material recebido
por vocês para esta conferência, defendia a temporalidade divina. No cenário contemporâneo,
pensadores como Alan Padgett, Richard Swinburne, Stephen Davis e Nicholas
Wolterstorff têm todos eles optado por modelos da temporalidade divina.
Obviamente
as duas visões não podem estar certas, pois uma contradiz a outra. Dizer que
Deus é atemporal é simplesmente afirmar que ele não é temporal. Portanto, uma é
a negação, ou a negativa, da outra. Se Deus for atemporal, ele não será
temporal; se for temporal, então, por definição, não será atemporal. É comum os
leigos dizerem: “Bem, por que Deus não pode ser as duas coisas? Por que não
pode ser tanto temporal quanto atemporal?”. Bem, o problema com essa resposta é
que, a menos que se apresente um modelo no qual essa alegação faça sentido,
ela, de imediato, contradiz a si mesma e, logo, não pode ser verdadeira. É como
afirmar que algo tanto é preto como não-preto. Isso é logicamente impossível, a
não ser que se forneça algum modelo que supra uma diferença que torne possível
o argumento. Por exemplo, algo pode ser preto de um lado e não-preto do outro.
Ou ser preto num momento, mas ser não-preto mais tarde, noutro momento.
Portanto, caso se pretenda sustentar que Deus é tanto temporal quanto
atemporal, é indispensável fornecer algum modelo que dê sentido a isso. Nesse
caso, obviamente, nenhuma das duas alternativas serviria, pois uma parte de
Deus não pode ser temporal e a outra atemporal, porque, como ser imaterial,
Deus não tem partes separáveis. Ele não se compõe de partes. Nem é possível
afirmar coerentemente que Deus é atemporal num instante e temporal noutro,
porque é claramente autocontraditório afirmar que ele é atemporal em
determinado tempo. Essa é uma contradição de termos. Logo, as duas visões
acerca da eternidade de Deus não podem estar certas. Temos de decidir se Deus é
atemporal ou temporal.
Portanto,
o que eu gostaria de fazer hoje é examinar primeiro os argumentos favoráveis e
contrários à atemporalidade divina e depois analisar os argumentos favoráveis e
contrários à temporalidade divina.
Ora,
descobri que a maioria dos argumentos favoráveis à atemporalidade cuja
literatura examinei é claramente falaciosa ou, na melhor das hipóteses,
inconclusiva. Mas há um argumento favorável à atemporalidade que considero
realmente muito persuasivo, o qual se baseia na incompletude da vida temporal.
A vida temporal é radicalmente incompleta visto que ainda não temos nosso
futuro e já não temos mais nosso passado. Nosso passado está continuamente indo
embora, e estamos sempre buscando o futuro que não temos. Na existência, tudo o
que temos de permanente é o momento presente, que está sempre fugindo, sempre
se desvanecendo, sempre passando. É assim mesmo a única coisa que temos de
permanente na existência, como seres temporais. A nossa vida é, assim,
radicalmente efêmera e tem permanência demasiadamente tênue na existência. Mas
isso parece incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como é Deus.
Anos atrás, fui convencido inesperada e
poderosamente da efemeridade da vida temporal quando lia o livro Little
House in the Big Woods, 3 de Laura Ingalls, para nossos filhos pequenos, Charity e
John. Ora, não dava para esperar que esse livro fosse uma fonte de percepção
filosófica, mas, à medida que chegava aos parágrafos finais que encerravam o
livro, fiquei absolutamente atordoado com o que li. (Ele não causou tanto
impacto em meus filhos, mas atingiu-me como um martelo!). Eis o que ela
escreveu:
As longas noites de
inverno, lareira e música chegaram de novo [...] A voz forte e doce do Paizinho
cantava com suavidade:
“Poderíamos esquecer os
velhos conhecidos,
E jamais trazê-los à
memória?
Poderíamos esquecer os
velhos conhecidos,
E os dias de outrora?
E os dias de outrora,
meu amigo,
E os dias de outrora,
Poderíamos esquecer os
velhos conhecidos,
E os dias de outrora?”
Quando o violino parou
de cantar, Laura chamou de mansinho, “Que são dias de outrora, Paizinho?”
“São os dias de muito
tempo atrás, Laura”, disse o Paizinho. “Vá, agora durma”.
Mas Laura ficou acordada
um pouco mais, ouvindo o violino do Paizinho tocando suavemente e o som
solitário do vento nas árvores do Grande Bosque. Ela olhou o Paizinho sentado
no banco junto à lareira, com a luz das chamas refletindo no cabelo e na barba castanhos
e reluzindo no violino marrom com tons de mel. Olhou a Mãezinha, tricotando e
balançando de leve a cadeira.
Ela disse a si mesma:
“Isto é o agora”.
Estava feliz que a casinha aconchegante, seu Paizinho, sua
Mãezinha, a lareira e a música eram o agora. Não poderiam ser esquecidos,
pensou ela, porque o agora é agora. Não pode nunca ser muito tempo atrás. 4
O que torna essa passagem tão comovedora, evidentemente,
é que agora o momento no qual o pensamento de Laura Ingalls era tão real, era
“o agora” para ela, é muito
tempo atrás. Passou, foi-se para sempre! A Mãezinha e o Paizinho passaram. A
fronteira americana passou. A própria Laura Ingalls Wilder passou. Os dias que
ela chamou de “dias felizes e dourados” foram-se, passaram-se para sempre,
jamais serão recuperados. O tempo tem um modo selvagem de consumir a
existência, convertendo em tênue e fugaz nossa reivindicação de existir. E,
certamente, isso é incompatível com a vida de um ser perfeitíssimo, como Deus.
Um ser perfeito deve ter a vida toda de uma vez, completa, vida que jamais vai
embora nem ainda está por vir. Noutras palavras, a vida de um ser perfeito não
pode ter senão uma existência atemporal na qual ele existe num eterno agora que
nunca passa.
Esse
argumento favorável à atemporalidade divina atinge-me como extremamente
plausível e poderoso. Mas ainda não penso que seja totalmente demonstrável,
pois considero que a transitoriedade do tempo é reduzida para um ser
onisciente. Em parte, a razão para que os dentes do tempo nos pareçam selvagens
é porque não temos na mente a lembrança total do passado nem a antecipação do
futuro. Mas, para um ser onisciente, que conhece completamente o passado, o presente
e o futuro como se fossem exatamente agora, a natureza transitória da passagem
do tempo não é motivo para tanta melancolia. Deus tem a capacidade de
lembrar-se dos eventos passados e de revivê-los com tanta vividez e realidade
como se fossem presentes. Assim também, ele conhece antecipadamente os eventos
que ocorrerão no futuro com o mesmo tipo de realidade com a qual conhece os
eventos presentes. Portanto, para um ser que tem total lembrança do passado e
total conhecimento antecipado do futuro, a passagem do tempo não é um defeito
tão severo e prejudicial quanto é para nós, criaturas finitas e temporais.
Todavia, na ausência de argumentos contrários favoráveis à temporalidade
divina, considero realmente que esse argumento oferece fundamentos plausíveis
para afirmar que Deus é atemporal.
Então,
que objeções podem surgir contra a atemporalidade divina? Bem, uma das objeções
mais comuns que é levantada na literatura é que atemporalidade e personalidade
são incompatíveis. As pessoas se envolvem em atividades como antecipação do
futuro e lembrança do passado; na deliberação e no pensamento discursivo; em
provar sentimentos conscientemente. Todas essas atividades são temporais. Por
isso, afirma-se que é incoerente a ideia de uma pessoa atemporal.
Seria
esse um bom argumento? Não estou convencido que seja uma boa objeção. Vamos
fazer um experimento mental: imagine que Deus se absteve de criar o mundo.
Imagine Deus existindo sem a criação. Podemos imaginar um mundo possível no
qual existe exclusivamente Deus, solitário, sozinho, sem nenhum universo nem
ordem criada, sejam quais forem. Num mundo assim, Deus seria temporal? Bem, se
ele tivesse um fluxo de consciência seria claramente temporal, pois haveria uma
série temporal de eventos mentais ocorrendo na sua mente. Mas vamos supor que
Deus existe imutavelmente nesse estado, que ele tem um estado de consciência
único. Nesse caso, ele seria temporal? Bem, considero que isso está longe de
ser evidente. Pelo contrário, na visão relacional do tempo, na qual o tempo é uma
simultaneidade de eventos, esse estado imutável seria um estado de
atemporalidade. Portanto, Deus existindo num tal estado seria, segundo penso,
plausivelmente atemporal.
Alguém poderia dizer: “Um ser pessoal não pode
existir em condição atemporal”. Bem, por que não? Quais são as condições
suficientes para a personalidade? Bem, parece-me que a condição necessária e
suficiente para a personalidade seja a autoconsciência. Conhecer a si mesmo
como um eu, ter percepção de si mesmo e autoconsciência e,
portanto, intencionalidade e liberdade de vontade são suficientes para a
personalidade. Mas autoconsciência não é uma noção inerentemente temporal. Deus
pode simplesmente conhecer toda a verdade numa única intuição da verdade sem
ter de aprendê-la nem ter de chegar à sua conclusão por meio de um processo.
Uma vez que a sua consciência não muda, não há razão para atribuir
temporalidade a Deus. Assim, nada existe a respeito de uma vida autoconsciente
que implique temporalidade, desde que considerada como autoconsciência
imutável.
Quanto às outras propriedades que mencionamos,
eu diria que, apesar de serem propriedades comuns às
pessoas humanas (as quais, afinal de contas, são temporais), não são
propriedades essenciais da
personalidade. Por exemplo, considere-se a deliberação e o pensamento
discursivo; isso é ausente de Deus, não tanto em razão da sua atemporalidade,
mas por causa da sua onisciência. Um ser onisciente não precisa deliberar, pois
já conhece as conclusões de tudo quanto ele possa pensar a respeito. E, portanto,
a atividade pensante de Deus não pode ser discursiva, já que ele é um ser
onisciente. Ele simplesmente conhece a verdade toda numa única intuição num
único instante. Da mesma maneira, memória e antecipação não são essenciais para
uma pessoa atemporal, pois não tem nada para esquecer nem para antecipar, uma
vez que ela simplesmente existe atemporalmente. Não há passado nem futuro.
Assim, essas qualidades, conquanto comuns às pessoas humanas, não são
essenciais à personalidade, e, portanto, parece-me que não há incoerência em
referir-se a Deus como um ser pessoal atemporal.
Na verdade, penso que a doutrina da Trindade
pode ajudar-nos a sair dessa, porque ela fornece um modelo funcional para a
existência atemporal de Deus. Quase sempre se afirma que as pessoas têm de
existir em relacionamentos interpessoais, e, assim, Deus tem de ser temporal.
Assume-se que as pessoas com as quais Deus se relacionaria deveriam ser pessoas
humanas. Mas, segundo a doutrina cristã da Trindade, isso não é verdade. Deus, em
seu próprio ser, é tripessoal, e, na unidade de seu próprio ser, ele pode gozar
da plenitude de relacionamentos interpessoais no seio da própria Divindade, de
modo atemporal e imutável. Tudo que o Pai sabe, o Filho e o Espírito sabem; o
que o Pai ama, o Espírito e o Filho amam; o que o Filho quer, o Pai e o
Espírito querem. Essa é a doutrina da pericorese, segundo a qual as três pessoas da
Divindade são completamente transparentes uma para a outra e se interpenetram
mutuamente. E da mesma maneira que às vezes nos referimos a dois apaixonados —
sentados frente a frente, olhos nos olhos, sem dizerem palavra — como “perdidos
num instante atemporal”, assim, de maneira literal, Deus, nos relacionamentos
interpessoais da Trindade, pode existir num instante atemporal de amor,
plenitude e bem-aventurança absolutos na autossuficiência do seu próprio ser.
Portanto, não estou absolutamente convencido de que atemporalidade e
personalidade sejam incompatíveis; parece-me bastante possível e plausível que
Deus, enquanto ser pessoal, existe atemporalmente.
Em
síntese, então, vimos um bom argumento favorável à atemporalidade divina — não
decisivo, mas acho-o plausível — e, até aqui, sem uma boa razão para rejeitar a
atemporalidade divina.
* Dr. Willam
Lane Craig é doutor em filosofia pela Universidade de Birmingham, na Inglaterra,
e em teologia pela Universidade de Munique, na Alemanha. Disponível em: http://www.reasonablefaith.org/portuguese/deus-tempo-e-eternidade.
Traduzido por Marcos Vasconcelos.
Revisado por Djair Dias Filho.
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